Outro dia estava lendo um desses artigos da arte da psicologia como um fim em si, do tipo que vomita diagnósticos freudianos a tudo o que vê, e encontrei uma pérola em meio aos porcos.
Voz única entre todos os profissionais entrevistados, que insistiam, em coro, que as pessoas não aceitam críticas ao seu trabalho porque sofreram algum trauma na infância provocado pelo descuido dos pais (blé), um senhorzinho resolveu pensar. Disse algo assim: “Não aceitamos bem as críticas ao nosso trabalho porque vida profissional e privada estão tão ligadas que fracassar na vida profissional é fracassar na vida pessoal”.
Aí pensei nas milhares de vezes em que me senti pequena. Tão pequena que só conseguia crescer em volume da água que saia dos meus olhos. Pensei nas vezes em que me senti sozinha frente ao mundo de gente tão incomparavelmente melhor do que eu naquilo que faço. Pensei nas diversas vezes em que pensei em desistir do metiê porque nunca tinha ouvido falar daquele livro, feito aquela relação entre os conceitos ‘x’ e ‘y’ ou pedido a coleção completa dos Pensadores de presente pro Papai Noel.
Não sei muito de política pública, apesar de ter estudado uma. Nem de cooperativas, apesar de ter estudado algumas. Muito menos de teoria do Estado, apesar de essa ser a minha formação acadêmica principal.
E aí me veio Durkheim, o cara que inventou a ciência da minha “profissão”, e me lembrou, mais uma vez, que nem sempre o mundo foi assim. O problema da confusão entre sucesso profissional e sucesso pessoal é essa exigência que se faz de que devemos cumprir uma função particular com o nosso trabalho.
“Se aperfeiçoar, disse M. Secrétant, é aprender seu papel, é se tornar capaz de preencher uma função… A medida da nossa perfeição não está mais na nossa complacência com nós mesmos, nos aplausos da multidão ou no sorriso aprovador de um diletantismo precioso, mas em uma soma de serviços prestados e na nossa capacidade de lhes prestar” (Durkheim, em “Da Divisão do Trabalho Social”)
O problema é quando a gente foge da especialização justamente porque não vê uma função em si mesma naquilo que a gente faz.
Eu me perco sempre nos entremeios. Me distraio com leituras irrelevantes pra área de especialização. Me deixo encantar com as mônadas de Tarde e Leibniz quando deveria estar atenta às discussões de direito do trabalho. Revisito o sul de Moçambique e percebo que me lembro de toda aquela monografia que li, há dois anos atrás, sobre a população chopi e suas relações de parentesco – mas não me lembro de nada, ou de muito pouco, da discussão dos institucionalistas e da teoria da escolha racional, leitura que fiz na mesma época.
Eu sofro pela impossibilidade de cada dia poder ser uma coisa. De acordar chef de uma risotteria e ir dormir estilista da grife de nome descolado.
A gente sufoca as possibilidades pra virar especialista em carimbos de tinta preta. Ou rosa. Ou roxa. Dos três, não dá.