Posts Tagged ‘sociologia do trabalho’

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papai, quero ser diletante

setembro 14, 2009

Outro dia estava lendo um desses artigos da arte da psicologia como um fim em si, do tipo que vomita diagnósticos freudianos a tudo o que vê, e encontrei uma pérola em meio aos porcos.

Voz única entre todos os profissionais entrevistados, que insistiam, em coro, que as pessoas não aceitam críticas ao seu trabalho porque sofreram algum trauma na infância provocado pelo descuido dos pais (blé), um senhorzinho resolveu pensar. Disse algo assim: “Não aceitamos bem as críticas ao nosso trabalho porque vida profissional e privada estão tão ligadas que fracassar na vida profissional é fracassar na vida pessoal”.

Aí pensei nas milhares de vezes em que me senti pequena. Tão pequena que só conseguia crescer em volume da água que saia dos meus olhos. Pensei nas vezes em que me senti sozinha frente ao mundo de gente tão incomparavelmente melhor do que eu naquilo que faço. Pensei nas diversas vezes em que pensei em desistir do metiê porque nunca tinha ouvido falar daquele livro, feito aquela relação entre os conceitos ‘x’ e ‘y’ ou pedido a coleção completa dos Pensadores de presente pro Papai Noel.

Não sei muito de política pública, apesar de ter estudado uma. Nem de cooperativas, apesar de ter estudado algumas. Muito menos de teoria do Estado, apesar de essa ser a minha formação acadêmica principal.

E aí me veio Durkheim, o cara que inventou a ciência da minha “profissão”, e me lembrou, mais uma vez, que nem sempre o mundo foi assim. O problema da confusão entre sucesso profissional e sucesso pessoal é essa exigência que se faz de que devemos cumprir uma função particular com o nosso trabalho.

“Se aperfeiçoar, disse M. Secrétant, é aprender seu papel, é se tornar capaz de preencher uma função… A medida da nossa perfeição não está mais na nossa complacência com nós mesmos, nos aplausos da multidão ou no sorriso aprovador de um diletantismo precioso, mas em uma soma de serviços prestados e na nossa capacidade de lhes prestar” (Durkheim, em “Da Divisão do Trabalho Social”)

O problema é quando a gente foge da especialização justamente porque não vê uma função em si mesma naquilo que a gente faz.

Eu me perco sempre nos entremeios. Me distraio com leituras irrelevantes pra área de especialização. Me deixo encantar com as mônadas de Tarde e Leibniz quando deveria estar atenta às discussões de direito do trabalho. Revisito o sul de Moçambique e percebo que me lembro de toda aquela monografia que li, há dois anos atrás, sobre a população chopi e suas relações de parentesco – mas não me lembro de nada, ou de muito pouco, da discussão dos institucionalistas e da teoria da escolha racional, leitura que fiz na mesma época.

Eu sofro pela impossibilidade de cada dia poder ser uma coisa. De acordar chef de uma risotteria e ir dormir estilista da grife de nome descolado.

A gente sufoca as possibilidades pra virar especialista em carimbos de tinta preta. Ou rosa. Ou roxa. Dos três, não dá.

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vida de frila

junho 25, 2009

Estou lendo uma série de artigos de Ursula Huws reunidos no livro “The Making of a Cybertariat: Virtual Work in a Real World”. Feminista, a moça problematiza o papel das mulheres  na III Revolução Tecno-científica (empregos sim, mas precários) lá nos idos de 1970, entre otras cositas más.

O que quero destacar, no entanto, é o desabafo que ela registrou na introdução do livro. Um desabafo que dialoga com a geração 20 e poucos anos – a minha, a sua, a nossa!

Huws passou grande parte de sua vida fazendo bicos. Trabalhava como pesquisadora freelancer para ONG’s, órgãos do governo britânico, instituições de movimentos sociais etc. Foi a partir desses trabalhos, ou apesar deles, que ela escreveu os artigos que estão no livro. Huws dá seu testemunho e analisa essa relação de trabalho. Eu fecho com ela:

“The self-employed are often envied by those in more traditional employment for our apparent freedom from life in the rut. Instead of an orderly development from one research project to the next, we seem to flit, butterfly-like, from one subject to another. We can follow the scent of an interesting thought trail without bumping up against the barriers of an academic discipline, or the remit of a job description. But the other side of the freelance coin is a state of permanent insencurity. The freedom to take on what work you like is modified by what is available; the freedom to write what you like is modified by what the client will accept; and the freedom for mental exploration is restricted by the time available. When you have enough work, you have no time; when you have time, you have no money”.

cartoon, daqui (eu procuro, tu procuras, ele procura, certo?).

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Madagascar e a loucura do trabalho

maio 20, 2009

Christophe Dejours escreveu “A Loucura do Trabalho” em 1980 depois de estudar as enquetes clínicas solicitadas pelos próprios trabalhadores na década de 1970, na França. Ele concluiu que, apesar da pressão gerada pelas novas formas de organização do trabalho, os trabalhadores criavam mecanismos defensivos, em sua maioria, coletivos, para se proteger dos danos mentais e morais que a nova lógica flexível podia causar.

Hoje ouvi uma história triste. De um grupo de trabalhadores que, ganhando menos que um veterano da empresa – que está lá há 30 anos -, lhe disseram que adorariam que ele fosse demitido para que pudessem dividir seu salário entre eles. 

Este homem chegou em casa e assistiu “Madagascar” com a família. Enquanto assistia, se sentiu na pele da zebra, sempre perseguida pelo amigo leão. Depois disso, ele e o outro amigo veterano desenvolveram, com bom humor, uma fórmula teatral, bem didática, para mostrar aos companheiros de serviço a irracionalidade e a deslealdade contidas no desejo deles: levam leões e zebras de pelúcia e simulam perseguições e massacres de mentirinha.

Não sei se a ficção vai fazer surtir o efeito que a opressão e a falta de perspectivas surtiram nos pesquisados de Dejours: a noção de que todos estão iguais na merda e que, para sair dela, é preciso recuperar a noção de coletivo que o individualismo do final do século XX fez a gente esquecer.

Se nem mesmo os colegas de trabalho que desempenham as mesmas funções conseguem perceber os problemas que lhes são comuns, que dirá a sociedade como um todo?

É difícil viver em coletivo, mas a solidariedade não pode se perder em mesquinhezas. Nem de brincadeira. O custo disso é muito alto. Talvez Hobbes fosse um visionário. A guerra de todos contra todos, uma abstração que ele usou como muleta filosófica, ganha traços cada dia mais bem elaborados.